Nas últimas décadas do século XX São Paulo assiste o surgimento dos Moto-Boys.
Resposta apressada às exigências cada vez maiores de eficácia empresarial da economia globalizada os office boys motorizados, introduzindo simultaneamente no panorama das relações de trabalho e na paisagem urbana uma modalidade inusitada de tribalismo corporativo, por adotar um código peculiar de conduta podem se entregar coerentemente à barbárie no trânsito da grande cidade. Auto denominam-se Cachorros Loucos.

O mais famoso dos moto boys, celebrizado por seduzir e matar, sozinho e em série, garotas num matagal da zona sul, teve estampada em inúmeras fotos de jornal a expressão de sofrimento de seus velhos pais que não conseguiam reconhecer no garoto que ele fora o assassino frio que confessou ser.
Cachorros contraem raiva, em geral, por negligência do dono. Soltos na rua, em disputa pela fêmea no cio, os cães vadios acabam por encontrar um oponente contaminado, saindo feridos da contenda e, à partir daí, fadados a desenvolver a doença. Nestes casos mesmo o cão vacinado estará condenado à morte horrível que decorre da hidrofobia.
Vale lembrar que cães raramente passam sem ter um dono. Animal visceralmente afeito aos pactos, o cão, quando "de rua", não deixa, por isso, de ser de alguém - em geral, como ele, sem teto - ou, de maneira informal, agregar-se a algum núcleo comunitário, de bairro ou quarteirão, que irá lhe fornecer, principalmente, comida.


As Balada do Cachorro Louco

Como num RAP
Quem me vê assim não diz
Mas um dia eu já fui um cachorro feliz
Há muito tempo atrás
Nos dias que eu vivi com os meus pais
Eu podia
Ser amigo das flores dos homens e dos animais
Eu me sentia capaz
Eu me sentia forte
No meu tempo de filhote a morte não existia
Eu brincava com meu pai
Na minha mãe eu mamava
No meu tempo de filhote eu sempre escapava
Hoje eu sei que a vida está para mim por um triz
Quem me vê assim não diz
Mas no meu tempo de filhote eu sei que fui feliz
A minha casa era muito engraçada
Não tinha teto, ela não tinha nada
Ninguém podia entrar nela, não
Porque minha família não tolerava invasão
E a gente dava patada
Cravava o dente
No meu tempo de filhote a coisa era diferente
Eu brincava com meu pai
Na minha mãe eu mamava
No meu tempo a coisa tava braba
Mas eu vivia contente
Mas não pense, nem por um segundo,
Que alguém me dava na boca, ah...
A minha casa era uma toca
Era um buraco fundo
Quando eu nasci naquele fim de mundo
Um anjo veio ler a minha mão
E ele tava imundo
E a gente dava patada
Diariamente
No meu tempo de filhote, pra mim,
Era indiferente, pois,
Se eu brincava com meu pai,
Na minha mãe eu mamava,
A tristeza para mim veio muito depois
Como eu dizia
A minha casa era muito engraçada
De costas pro mato
De frente pra rodovia
A minha mãe sumiu no pó da estrada
E o meu pai, um belo dia, comeu
Aquilo que não podia
E eu
Amanheci abandonado
Sem ninguém do lado
Pra me fazer companhia
Eu vivi no ventre da Baleia
Eu não fazia idéia
A melancolia que me deu!
Eu gritava por meu pai
Mas ele não chegava
Eu senti minha garganta seca
Eu não mamava
Eu não sei exatamente como aconteceu
Mas um dia eu acordei e o filhote já não era eu
( Wild Thing, Wild, Wild Thing )
E foi assim que eu cresci
Se não me falha a memória
De qualquer maneira
Foi sempre assim que eu vivi
A minha vida ela não tem mistério
Eu sou amigo do homem
Se tenho sede eu bebo
E como se tenho fome
Eu não tenho nome
Porque não tenho dono
Eu durmo se tenho sono
Se der vontade eu desperto
Eu aprendi que o mundo é de quem chega perto
No momento certo
E faz o acerto direito
O caminho é estreito
Eu não sei outro jeito
Meu repouso perfeito
É onde eu deito
Eu levanto
Se nada me impede
Eu pensei que a rua fosse minha
Porque na minha casa não tinha parede
Eu cai na rede
Rolei da ribanceira
Pisei num caco de vidro
Na mais profunda miséria
Finquei um estrepe no dedo
Fiquei gelado de medo
Eu entrei muito cedo
Na minha história
( Wild Thing, Wild, Wild, Wild Thing )
Eu tropeço
Recomeço
Volto do fim pro começo
Quando eu penso em não fazer assim
Eu quase sempre esqueço
Eu pago o preço do sucesso que eu não mereço
Eu peço um prazo pra rezar o terço
Eu dou e desço
Eu agradeço a atenção dispensada
Dispenso a facada
Se alguém me aperta a corda no pescoço
Eu largo o osso
Eu sempre leio a instrução
Mas quase nunca sigo à risca
Eu penso
Que o perigo do anzol é o sabor da isca
( Wild Thing )
Quem me vê asim não diz
Que a vida está por um triz
Feliz
Eu era feliz e sabia
Eu daria tudo que eu tenho
Pra ter a infância de volta
Ah! Mas que mancada
Eu já não tenho nada


o2

Conversa de Botequim

te seqüestrei, vou te reter pra sempre
na minha idéia


Enquanto galgávamos os bancos altos à beira do balcão (neste botequim não há mesas, só balcão) o garçom trouxe os primeiros dois chopes.
Respondi que, mesmo sendo a vida uma obra, como você vinha dizendo um pouco antes de atravessarmos a porta giratória da entrada, inacabável, toda a minha fantasia de artista insiste em voltar-se para o desejo de construir (deixar, pensei pretensioso, mas não disse) uma.
Escrever livros, plantar árvores, ter filhos, o que será que essa anedota quer dizer?
Que necessidade é essa que se instala por ordem daquilo que se pensa, sente e faz? Que impulso é que nos habilita a acreditar que o que temos a dizer serve para alguém ouvir?
Pensar todo mundo pensa e, afinal, um corpus teórico (mudei a entonação da voz para itálico ao pronunciar um pouco mais devagar corpus teórico) qualquer é sempre possível de deduzir das atitudes de qualquer pessoa, basta que se a observe com atenção, mas alguns têm o gosto de vir a público! sorri, quase imperceptível, para dar fluência e não parecer pedante.
Contei que estava escrevendo um poema metrificado sobre Perseu e a Medusa inspirado num capítulo das Seis Propostas Para o Próximo Milênio do Italo Calvino.
"Ele usa as situações do mito como metáfora do fazer artístico", você lembrou daquele outro encontro.
Acrescentei que estava precisando acabar um texto em prosa sobre a vaidade, os textos eu mencionei porque me pareceram ecoar a conversa, ofereci mostrar quando ficarem prontos, se você quiser.

O assunto migrou na velocidade com que sempre migram à beira dos balcões, vi surgir na minha frente um segundo chope (neste bar, aos 80% bebidos, os copos são automaticamente substituídos por um novo), me esforcei pra lembrar de beber com um pouco menos de pressa e dali mais um tanto já estávamos passando a comentar o poema que eu mandei, a Balada do Cachorro Louco.

Percebi que ainda trago nítida a memória do momento em que a escrevi.
Havia um grupo de alunos de canto, adultos, todos biólogos e atuantes no combate à transmissão da hidrofobia.
Ri por dentro observando a sua expressão de estranhamento e segui falando até explicar que eram aulas que eu dava num certo Centro de Controle de Zoonoses, uma repartição pública responsável pela vacinação anti-rábica na Grande São Paulo.
Um grupo de profissionais devotadíssimos à causa, a despeito do que se diz sobre o desleixo no serviço público, foi o que eu encontrei quando comecei a lecionar para aquelas pessoas naquele lugar.
Você não sabia, mas é ali que fica a mais que temida... Carrocinha.
Animais pegos na rua (qualquer um, cachorros, gatos, cavalos, porcos!!) são levados para lá e se algum dono não os vem buscar, acho que não viram sabão, mas são, sem dúvida, sacrificados.
Parte-se do princípio que bicho que não é de ninguém transmite raiva.
A única maneira segura de evitar o contágio é mantê-lo doméstico (consegui o itálico desta vez conferindo a doméstico uma certa intenção de ironia e torci pra você associar o comentário àquela história das galinhas e das águias, não sei bem por que). A vacinação vem como medida, garantem, secundária.

Devem saber do que falam, pois há mais de vinte e cinco anos não se registra um único caso de raiva em São Paulo, resultado indiscutível da eficiência do trabalho de prevenir e capturar que eles coordenam.

Você quis saber como se manifesta a hidrofobia num ser humano e eu expliquei que os sintomas são os mesmos para qualquer bicho, menos os ratos, e de toda maneira - você deve lembrar da descrição que eu fiz - horripilantes.

Pensando em todas essas coisas e profundamente envolvido com o trabalho, resolvi montar com o grupo um musical infantil didático sobre a transmissão da raiva animal. Seria uma ferramenta a mais no esforço permanente de conscientização que eles promovem e uma chance de dar forma e significado pras coisas todas de música que nós estudávamos e a tudo que eu presenciava indo lá semanalmente.

A discreta melancolia que se abate sobre cada um dos funcionários deste lugar, misto de culpa e resignação, talvez científica, serve como uma espécie de espelho opaco para aquela outra tão mais densa e inescapável que a gente sente na presença de seu vizinho mais ilustre: a dois quarteirões do lugar onde vão morrer os cãezinhos sem dono fica o prédio gigantesco do Carandiru!

Contar isso tudo não levou pra mim mais que dois chopes, mas sem dúvida a sua expressão era de um certo cansaço - conclui depois de um tempo distraído observando a linha do seu antebraço subindo desde o cotovelo, passando em curva pelo pulso até a mão apoiando o queixo, olha, eu seria capaz de conversar noites inteiras, falar sem parar emendando assuntos uns nos outros, fluxo de consciência, associação livre, mais um chope! segui contando como escrevi a peça, as músicas da peça, dirigi a peça, atuei na peça e como tudo resultou num trabalho educacional de que me orgulho muito.
Conseguimos, eu e as moças (adivinhe se os homens todos que trabalham lá quiseram se envolver?) montar um pequeno, precário e mal feito espetáculo onde elas apareciam inteiras, entregues, falando das coisas com as quais conviveram anos a fio, mas de uma forma renovada, "cantando" o trabalho, na "pele" dos cachorros.
Eu era o cachorro louco, o personagem que contaminava o cachorro/mocinho da história.
Morríamos os dois, eu cantava o rap e ele Blue Moon, versão brasileira: este que vos fala.
Agora você já sabe que depois do sexto chope eu começo a cantar.

Blu-ue moon
Se a noite tem lua-a-a-ar
O azul do céu me faz le-embrar
Da luz do teu olha-a-ar

Co-o-mum
É tão comum ficar
A-assim
Vagando pra lugar ne-e-nhum
A noite não tem fim

Quando o clarão
Da noite
Se fo-o-o-or
E o calor
Da luz
Do Sol
Che-e-gar
Me encontrará
Tentando
Achar ra-a-zão
Pra me lembrar
Da cor do teu olha-a-ar
Tão azu-ul

A-azul
Luar azul eu sei de-e cor
A dor que fica ao meu re-e-dor
Até o Sol se pô-or

No tempo que levou pra ir ao banheiro eu me ocupei lembrando as cartas que você tem mandado: ir à caixa de correio, abrir o envelope, uma ponta de ansiedade e ler, reler, imaginar a resposta, planejar uma idéia, escrever, é tão bom escrever!
Quando voltamos cobrei que me enviasse logo um próximo texto, já tenho alguns comentários esboçados mas gostaria de ter uma visão mais global da obra. Sorri. Onde estávamos? Quantos chopes você já bebeu?? Garçom!? mais um?!! sabe? o que mais me chama a atenção no cachorro louco é que ele não é nem um pouco parecido com o que a gente imagina dele: sente dores horríveis e procura um lugar escuro pra ficar imóvel, escondido. Só quando alguém vai mexer é que ele ataca. De dor.
Depois que a doença se instala o bicho fica lá, esperando pra morrer.
O perigo é quando, já infectado, ainda não tem sintomas: disputando fêmeas normalmente e contaminando todo mundo.

Transformar tudo em poema, isso que eu queria.

O cachorro louco da Balada é um pouco vítima, um pouco corruptor, mas, principalmente, auto-indulgente, ou será que não é nada disso? acho que escrevi um pouco bêbado e esqueci.

Já ia começar a recitar aquele soneto que eu fiz sobre engenharia mecânica quando vi surgir, desta vez, a conta.

Ando desconfiado que foi você que pediu.

Saímos de lá e eu segui andando, conversando sozinho, esbarrando nos cachorros da rua, pensando em sabores, iscas e relacionamentos: o peixe preso no anzol, sem paladar e já sem ter pra onde ir.

Esse mundo é uma metáfora, lembrei cantarolando.

E se amanhã eu morrer?


o3

Medusa


Diz-nos Italo Calvino
nas suas Seis Propostas que
um dos ideais da poesia
é a Leveza - vista aí

no sentido que realce
o que subjaz, intrínseco,
ao aparente paradoxo
que há entre o que é leve e o que pesa -

e à guisa de argumento
usa a metáfora da Medusa
que petrifica a quem ousa
lançar-lhe um olhar direto

Ser um bloco de concreto
- face do peso da vida -
tem sua contrapartida
na natureza do objeto

que Perseu, não por acaso,
recebe das mãos das Musas:
um escudo que reluz a
tal ponto, que não só

protege como projeta
a hórrida imagem da Górgona.
Veja a vantagem de um cego:
escapa ao flerte enquanto luta

guiado pelo reflexo
e leva a termo a batalha
talhando o monstro, à navalha,
na altura do pescoço.

Redivivo em herói o moço
parte, retoma a jornada
- as alpercatas aladas -
leve, levando na bolsa o

crânio recém degolado
peso arrancado do corpo
que lançará em torpor
pétreo, rígido, pesado

a quem olhos lhe ofereça
basta que se o erga do alforje.
A partir de agora rege
Perseu mais uma cabeça


o4

O que diferencia o artista da pessoa comum? A vaidade.

Evidente que gênios também os há. Às vezes, simultaneamente, artistas e gênios. Estes, quando o são, assim como os matemáticos, fotógrafos, carpinteiros gênios, passam pela vaidade, levam-na consigo ou não, mas sua obra é que permanece. Aos que não somos gênios, resta a semelhança na vaidade e a possibilidade de tê-los como inspiração. Fingir o gênio, como se fôssemos. Se vaidade já a temos que nos venha também o rigor, a obstinação, a grande paciência do gênio. Como por esse meio não se adquire um grande talento - o aspecto do gênio ao qual não teremos acesso - tenhamos, pois a humildade de reconhecer nossa insignificante pequenez (ainda que vaidosa) e, quem sabe, advenha daí, justamente, qualquer experiência iluminatória.

Na Aurora, de Murnau, o personagem que sonha com uma vida nova precisa retornar à origem de sua auto-imagem, volta mítica, retorno à idéia primeira de identidade. Sua "vida nova" é desejo transposto em fantasia, no sentido psicanalítico, desejo não sublimado, realizado apenas em imaginação e que, inevitavelmente, se confrontado com a realidade, deteriora, distorce. Este o aprendizado da maturidade: resignar-se aos limites do real, estar conforme, separar realidade da fantasia. Resulta muitas vezes daí o conformismo, sequela na maturidade do luto não resolvido da infância perdida.

E o artista, que precisa resguardar em si o jogo lúdico do faz-de-conta, o mundo mental que se transporta para o mundo concreto através de seus pequenos objetos-idéias, castelos de sonho, sob pena, caso contrário, de enrijecer-se perante a realidade que pretende realçar, desvelar? Como amadurecer, enquanto artista? Talvez todo artista, gênio ou medíocre, possa ter isto para partilhar, a experiência infantil preservada. Se a vaidade é a onipotência infantil arraigada no adulto, o artista, na tentativa de amadurecer, corre permanente risco de, como na piada, jogar fora a criança junto com a água da bacia. Estátua de pedra que olhou nos olhos a realidade, o homem comum carece da experiência artística que lhe forneça as sandálias aladas e o escudo de Perseu. A imagem projetada da Medusa é o que o artista tem para oferecer em tempos pós-míticos. Mas, dilema! perigo! trágico destino, a ele mesmo cabe a travessia que o pode levar ou não ao outro lado do labirinto e uma Górgona inteiramente sua para o flerte. Que espessura tem o fio de Ariadne onde terá de se dependurar o grosseiro artista? Como entender o mecanismo do mundo e não cair vítima do funcionamento de sua engrenagem, nós, paupérrimos artistas, nós que não somos, nem nunca seremos, gênios?
a

o5

As musas não têm perfil, seu rosto quem o dá é o Destino, a seu gosto.
- São feitas da matéria de que são feitos os sonhos!
Desejar o corpo da musa é o abismo.
Foi inevitável: me atirei.
Cruzei a ponte que separa os dois mundos incompatíveis.
Agora, feito um bailarino hindu que dançou no alto de uma árvore
na ponta de um pé só,
penso o equilíbrio entre o ar e o vazio, as mãos mandam mensagens,
um alfabeto de gestos, enquanto despenco.
Lá embaixo alguém acena: pareço dizer adeus?
Na guerra dos mundos, os dois mundos que não combinam acabaram por se tocar.
Já era tarde, noite alta.
E o corpo da musa,
impenetrável.


o6

Cantiga de Amigo

Garrei na viola,
entoei uma moda,
ela era a marvada.

Dancei um bolero:
a dor que me mata
é a ingrata.

Lancei mão do violão
decidido a fazer um samba
ela era a razão.

No meu forró,
ela é o xodó.

A transpiração
no meu som de negrão

O cuspe
do roque punk

Fiz um reggae
ela é o skank

A moça da minha brega


Marquei um futebol, sábado, três e meia
Depois um pagode,
violão e cavaquinho.
Com-amor-muito-carinho
ensinei pra patuléia:
"Ela é muita areia
pro meu caminhãozinho".
Quem me aplaude?

Fiz um soneto do Vinícius
com música do Tom Jobim,
uns toques do Newton Mendonça
e a voz do João Gilberto
putz! nem parece que eu fiz sozinho!
tinha até bim bom bim bim!
- Tô louco que você ouça!
mandei a fita e um bilhetinho.
... inútil sacrifício
não deu certo.

Fui no computador
fiz um som pesado paca
um jungle-trip-dub-bate-estaca,
matador
música pra dançar chapado
- cercado de homem por tudo que é lado -
do começo até o fim
gritando: Dancing queen! Dancing queen!
nem assim.

Ataquei uma salsa
cheio de malícia.
Na zona do baixo meretrício,
a corja comigo em coro,
a malta, a manada, a súcia
repetindo: Volúpia! Volúpia!
Premissa falsa.
Pura estultícia.
No meio da balbúrdia
fechava os olhos e entendia,
por dentro, sonoro:
Letícia, Letícia.
Quase choro!
Letícia.

Noite alta, céu risonho,
quis fazer uma seresta:
'nos teus olhos eu suponho'
'a ruazinha modesta'
a valsa dolente, o amor eterno,
'Tornei-me um ébrio'!!!
A noite inteira no sereno,
aquele frio!

Como o Quixote à Dulcinéia
como à Marília, Dirceu
como Dante a Beatriz
eu
me fiz
compor
elegias
coletâneas
odes de amor
a mancheia.

Como o Romeu de Shakespeare,
afogueado de paixão,
quis recitá-las na alcova,
de cor.

Do alto de uma árvore,
na escada que escala o balcão,
ouço o corvo que avisava:
never more, never more

Procurei um analista,
(peguei o endereço numa revista,
'pago no cartão
ou à vista')
falei, deitado no divã:
- Doutor, presta
atenção
no que eu pensei hoje de manhã!
Se eu fosse um marujo,
daqueles cujo
prazer
é se estirar no convés pra ver
a lua cheia,
ela era a sereia.

Se eu fosse o marinheiro
e ela o peixe encantador,
pedia pros companheiros:
Por favor,
por enquanto,
me deixem amarrado no mastro.
Até que silenciasse o canto,
tapava os ouvidos com cera,
quem persegue aquele rastro
já era!

Se eu morasse condenado numa cela
botava na minha mente
que dessa vez ia fazer diferente.
Escrevia uns negócio pra ela,
trocava uma idéia.
- Sai fora com esses tipo de papo groselha,
xarope,
que os cara entope as orelha da mina
depois desmente
afina
na hora que tá com tudo em cima!
Só ia ter papo decente!
Punha a carta no correio, aí, ó,
só na moral, tá ligado?
puta dum clima!
passava um ano,
no dia das visita: - Espera sentado
que ela num veio aí, ó,
mano,
que foi num passeio.
Aí, ó...

Tudo isso eu falei na entrevista,
lembra? com o terapista?

Emendei: oh,
doutor,
supõe:
tem uma dor,
que quando eu penso na vadia,
escuta só,
não importa o dia que caia,
pega a me dar uma agonia
não é preciso nem que eu insista,
é coisa que dá na vista,
nem o Cristo remedeia!
Ele deu a pista,
na veia:
- Isso é problema com a mãe,
só que agora,
acabou o prazo da sua hora,
o senhor me acompanhe,
acerta com a secretária
e área.

Dei o fora, fui fazer um twist
um som mais animado
que eu já estava meio triste
e ainda pensei: meu leitorado,
assim, desiste.

Emplastrei o cabelo com gomalina
saí, fui na matinê.

Fiquei reparando o laquê
do cabelo das meninas,
na fila, pra espairecer.

Ela apareceu com um cara
num sedã cupê.

Pra que?

Me acabei de ciúme!
Fiquei pra baixo de cu de cachorro!
Eu já vi esse filme:
no fim eu morro.

o7

Cantiga de Amigo 1 e meio

Citar me excita,
recitei:
"teus olhos são duas contas pequeninas"
"tudo o mais, pura rotina"
"what can I say to you, bonita?"
lembrei
"ah! como essa moça é descuidada!
com a janela escancarada
quer dormir impunemente",
fui em frente,
"aonde está você? me telefona"
assumi
"Do-ô-náá!!"
dai prum pupurri:
"bem que se quiiiis!"
mais, mais, mais, bis
"why - do - birds... suddenly appears?"
"help me if you can!"
"me chama! me chama!!!"
preciso de alguém
voando
no desespero
me destempero
e ainda cito alguma
do Wando

"Qualquer música, ah! qualquer"
um vislumbre, uma memória
"a merencória
luz..."
que esclareça!
Que me ajude a compreender
a imagem que eu pus
na cabeça
e não sai:
Ela nua,
preguiçosa, entre as cobertas,
lânguida, sussurando: - vem...
Ai!
Que sorvedouro me atrai?
"Ela tem o destino da lua
A todos encanta
E não é de ninguém"

o8

Depois Daquele Beijo

Estranho formigamento
nos lábios, pela manhã.
Descubro tratar-se
de uma memória.

Memórias às vezes doem,
às vezes podem gelar o sol.
Quentar o frio no inverno,
produzir um desvario
de laços, um inferno
de nós, uma rede
que acalme o sono,
surgir como surge a fome.
Essa, lateja
e desce
desde a boca até a cintura,
basta que eu me aquiete,
como se mãos me tocassem
de novo e diferente.

Tão física
tão corpórea
a memória
se manifesta,
e que outra forma
haveria?
que o ofício de escrever
não se presta,
nem dá conta.

Se antes, eu imaginava
e a caneta corria o papel
meus dedos agora sentem
o desejo de deixar marcas
por outras superfícies
pontuar longos parágrafos
até cobrir
a extensão das tuas costas,
garimpar rimas com as mãos,
uma em cada tua coxa,
simétricas
porque depois daquele beijo
dei pra imaginar com a pele
e o impulso de dizer
o indizível
ficou tão rente
que eu desisti;

Talvez,

se eu tivesse a arte
de um escultor,
forjasse,
à maneira cubista,
tua representação estatuária.
Os olhos, simultâneo
à esquerda e ao contrário,
não me perderiam de vista.

Ou então as mãos precisas
do ceramista
que modelasse
a argila das curvas
do teu quadril, do colo,
as alças delicadas dos braços,
retornada ao barro
de onde viemos.

Quem sabe eu relojoeiro
possuísse as ferramentas
mais adequadas
e os rubis
e ajustasse
tuas engrenagens
com o máximo de precisão.
Incansáveis
nos amaríamos
as horas todas do dia.

Ou, fotógrafo,
congelasse,
para mantê-los,
o momento
e o lugar exatos
em que a língua,
num passeio,
fez eriçar os pêlos.

Captasse os matizes
do brilho dos olhos
entrevisto entre as pálpebras
entreabertas
e pintasse um quadro
com olhos felizes.

Com lápis delineasse
o sorriso de dor
que não dura mais que um segundo
no rosto e desaparece.

Acupunturista
em busca dos teus meridianos
da loucura
da entrega
e dos desvãos.

Chef a cuidar
de aromas,
temperos,
palavras do paladar

ou o médico legista
que dissecasse
cada músculo, teu, teso
você morta de prazer

Talvez aí
eu dissesse
o que antes não ousaria

é que depois daquele beijo
me vi sem rumo
e a poesia
que me explicara
não era já
suficiente
não mais
que 'de repente',
no dia seguinte
me veio o alerta à boca:
um tremor e o gosto,
a memória!
Queria (pudesse eu ter)
a rota certa
que levasse até dentro de ti.

o9

Cantiga de Amigo 2

Ela espichou o corpo, preguiçosa,
no meio da festa, no tapete da sala.
Ao seu redor, pra mim,
havia um halo
e desejei tocá-la.

Ela jogou conversa fora
até (quase) perder a hora
na hora do cafezinho
mas uma vez só
(as outras todas muito curtas)
porque é moça séria
e não descuida da labuta.
Observei-lhe a silhueta que se ia embora
e de longe,
sozinho,
me perguntei: como seria?

Marcamos de almoçar,
comemos pouco.
No esforço de mastigar cada pedaço
da prosa
(horas de almoço,
o nome já está dizendo,
acabam depressa)
foi como se a ela estivesse, eu, devorando.

Trocamos cartas
e foi um sonho
as noites altas
e os céus risonhos
passeamos de mãos dadas
e o mundo inteiro era nada
perto das vezes que conversamos
perto das vozes que inventamos
perto das luzes que acendemos
das poses que modelamos
por escrito.

Um par de ases
num jogo perfeito
é o que éramos.

E veio o dia em que ela veio
e quis ficar bem junto.
Pela primeira vez, portanto,
eu não a receberia em casa pelo correio.
Abri-lhe as portas
a da frente
a do lado e a do meio
e, como poderia ser diferente?
disse-lhe: entre
e me pegou de cheio.

Ela espichou o corpo, deliciosa,
no meio da tarde,
no tapete da minha
humilde cela,
tenho certeza do que falo,
era mesmo ela,
reconheci-a pelo halo.

Depois ficamos de conversa fiada
e desfiamos cada
uma das nossas várias
eternas certezas
temporárias
nossos projetos, nossas histórias,
conversas longas, curtas, piadas
solenes promessas
à toa,
prosa das boas
de quase perder a hora,
mas só quase
porque, como eu dizia,
ela é moça séria
e agora queria,
sem demora,
saber como o mundo
de dentro da gente parece
quando muda de fase
e passa pro lado de fora.

Se somos da mesma
matéria
de que é feito o sonho
por que haveria
de haver essa sensação
de vácuo?
Por que esse brilho opaco
que permeia a realidade
e opõe,
entre a vida
e o pensamento,
a dúvida?
Por que deveria
a Medusa
ter o poder
de transformar em pedra,
além do herói,
a própria musa?
Por que esse espaço seco,
esse veneno inócuo,
esse oco?
Por que que a vida é um buraco?

Pensava eu
em tudo isso,
fechado na minha toca,
aquela mesma
em que ela hoje
me visita.

Por que mais uma carta?
Por que o sono me foge?
Por que que algo
dentro de mim
cisma?

Por que no idêntico
momento
em que,
mentalmente,
opus, em lista,
o claro e o escuro
o amor e o ódio
o óbvio e o confuso
a noite, o dia,
a guerra, a paz,
o homem, a mulher,
o menino, o adulto,
o novo, o velho,
o fresco, o podre,
a dor, o prazer,
o frio, o calor,
o tudo, o nada,
o ontem, o amanhã,
o embaixo, o em cima,
o paraíso e a maçã
e tudo que não combina,
lembrei-me também da rima,
que nos oferece aos pares
os objetos mais díspares
e, permita-me que compare,
faz com que Shakespeare
e uma... árvore,
por exemplo,
tenham algo em comum,
assim como um casebre,
possa ressoar um templo,
no meio de lugar nenhum?

Que fato da existência,
que vestígio
do mundo concreto
me leva a estes pensamentos
e não a outros,
mais nobres ou corriqueiros?

É o cheiro!
É o perfume!
É a memória
da moça séria
se rindo
e me arranhando
as costas.
A epiderme,
é o perfume!
o cabelo
as mãos
que me vasculham pelos
recantos, os vãos
e o pescoço,
meu recomeço
onde vou buscar
o cheiro,
- o perfume!
sussurro seu nome
e, ligeiro,
desço;
até depois que ela
partiu
eu não esqueço
e imagino
no corpo
um verso.

Misturas,
tanto há que se misture!
Eu e ela
o ilusório e o real
la vida es sueño
água mole, pedra dura
o...Tao!

quem sou eu
que me entretenho
nisso até o Sol
romper a noite pela janela?

Assim, cansado
de escrever
saciado como quando
termina o amor
descanso e os nervos
elétricos ainda
soltam faíscas
a pálpebra pesada
me indica
a hora da trégua
e não mais do que isso.
Daqui a pouco,
eu, submisso
às rígidas regras
da releitura,
continuarei à procura
da expressão mais pura,
Apolo à beira do abismo,
por amor de descrevê-la
mais bela
do que ela
por si mesma
já é,
princesa protegida,
filha de um senhor
el Rei.

Prestam
pra que
os poetas,
senão para imitar a vida?
Ela é inda melhor
do que eu imaginei,
ou é assim (meninos, ouvi.)
que soa
o grito do homem voador
ao cair em si?